Instant Barbecue

4 min readSep 15, 2017

Ou como preparar um churrasco nas Highlands

Churrasco significa a mesma coisa que barbecue, que significa a mesma coisa que grillen que significa kafta? Há algum tempo comecei a me interessar pela estudo da tradução. Sempre gostei bastante de estudar línguas e suas respectivas culturas, entender como as sociedades encaram coisas cotidianas. Sou adepta da teoria que a língua (e o uso que as pessoas fazem dela) diz muito sobre um povo. De acordo com Ferdinand de Saussure, um dos pais da linguística moderna, “não há pensamento sem língua”. Como poderíamos descrever o mundo, nossos hábitos, nossos anseios, nosso modo de vida sem o uso da língua? Cada língua carrega consigo as particularidades de sua cultura, o que implica dizer que a tradução exata, fiel é impossível.

Estou há pouco mais de um mês morando na Escócia, acompanhando meu marido em sua pesquisa de doutorado na University of Glasgow. Certo sábado de sol, seus colegas de doutorado nos convidaram para uma caminhada num Loch nas redondezas seguido de um “churrasco”. CHURRASCO?!? Como será um churrasco escocês? Na nossa concepção brasileira é quase virtualmente impossível fazer um churrasco sem ter uma churrasqueira decente, variados tipos de carne, linguiça, vinagrete, pão, cerveja, caipirinha e para muitos, samba e pagode. De antemão já sabíamos que seria um “churrasco” com aspas mesmo. Ficamos encarregados de levar o pão. Pão tipo árabe, para fazer wrap. Quem ficou responsável pelo preparo da carne foi um iraniano. O resto do grupo multicultural era o seguinte: um espanhol, uma italiana, uma chinesa, outra iraniana e dois representantes locais, além de nós dois, brasileiros. Um verdadeiro encontro de culturas.

Antes da nossa experiência gastronômica, a experiência turística – já que quase todos, exceto os escoceses, viviam há pouco tempo na cidade. Uma trilha incrível pelas montanhas que cerceiam o Loch Lomond. Embora ainda não seja parte do território chamado de Highlands, Loch Lomond pode sim ser considerado como o início das Highlands, segundo me informou o escocês do grupo. Quase duas horas de uma caminhada de tirar o fôlego! (em todos os sentidos). Constatamos que fazer trilha é uma atividade que se aprende desde pequeno e em alguns casos, desde bebê. Vimos muitas famílias subindo e descendo, às vezes até com os integrantes de quatro patas acompanhando a aventura. Embora o caminho seja considerado leve, eu precisei parar algumas vezes para recuperar o pique, coisa de quem está mais acostumada a andar de carro do que a fazer exercícios, infelizmente. Em alguns momentos achei que não daria conta de chegar ao topo (que me parecia tão distante). Consegui. E a vista foi realmente recompensadora. Momento de fazer vários cliques, descansar um pouco para depois iniciar o caminho de volta. A fome começava a aparecer e todos já ansiavam pelo “churrasco” ou “barbecue” iraniano.

Loch Lomond, Escócia. Foto: Erika Pacheco

Como “para baixo todo santo ajuda”, a volta me pareceu mais tranquila, exceto pelo trecho que resolvemos sair da trilha normal e ir por outro caminho, um pouco mais longo e com algumas áreas encharcadas. Se está no mato é para enfiar o pé na lama, certo? Certíssimo! Ovelhas e amoras e algumas plantas espinhosas também apareceram para nos acompanhar na descida. Após uma ou duas horas finalmente chegamos ao nosso local dos comes e bebes: àbeira do lago, ou melhor, do Loch. Loch Lomond.

E agora, cadê a churrasqueira e o carvão e as carnes? Bem, a churrasqueira era praticamente um tacho com uma lata. E eu pensando: como iremos assar qualquer coisa aí? Vai ficar com gosto de carvão! Talvez até ficasse, se fosse possível fazer com que o fogo pegasse com alguns míseros carvões e um vento que insistia em apagar a brasa incipiente. Depois de algum tempo, nosso líder do grupo e responsável pelas carnes, decidiu fazer algo. Eu imaginei que ele fosse buscar mais carvão ou algo assim e eis que ele aparece trazendo uma bandeja de alumínio tamanho grande onde lia-se “ instant barbecue”. Sério? INSTANT BARBECUE? Minha vontade foi de rir e confesso que fiquei um pouco incrédula que aquela bandejinha fosse capaz de nos proporcionar assar qualquer coisa.

Acende-la foi um pouco mais fácil do que a tentativa de fazer brasa no tacho. Fogo pegando, hora de preparar os espetos de carne… de carneiro moída, no melhor estilo kafta. Nosso iranian barbecue em solo escocês estava, finalmente, sendo preparado. Pouco mais de 15 minutos e saíram os primeiros espetos, prontos para serem degustados dentro do pão wrap. Não sei se era a fome, a paisagem, a companhia, mas confesso que nunca comi um kafta tão gostoso e ainda aprendi que a pronúncia do primeiro “a” em kafta soa quase como um “o” fechado. Os outros itens do barbecue de kafta eram: tomate assado na brasa e cebola. Claro que também tínhamos bebidas, coca-cola (onipresente em qualquer parte do mundo!), cerveja, água e uma espécie de água com gás com aroma e sabor de flores. Foi um sábado de sol perfeito a não ser pelo pneu furado na volta, mas até isso deu um toque especial. Após essa experiência fiquei pensando que eu nunca mais vou traduzir barbecue como churrasco! Ele pode ser kafta…ou grillen e não, definitivamente não corresponde ao que nós, brasileiros, chamamos de churrasco. Cada cultura tem seus sabores, e isso é intraduzível.

Loch Lomond, Escócia. Foto: Erika Pacheco

(Glasgow, 11 Setembro/2017)

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Erika Pacheco
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Written by Erika Pacheco

Libriana, ascendente e lua em gêmeos: curiosier and curioser

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